A proibição da compra e reprodução de espécies selvagens por parte dos donos dos circos colocou o assunto de novo no centro do debate público
(Por Fátima Mariano. In “Jornal de Notícias”, 18 de Outubro de 2009)
Albert Schweitzer (1875-1965), médico e filósofo alsaciano, percursor da bioética e Prémio Nobel da Paz 1952, foi muitas vezes alvo de troça por parte dos seus contemporâneos por ter o cuidado de não pisar insectos e evitar matar os micróbios que observava através do microscópio.
Schweitzer defendia que "tudo o que é vivo tem o direito de viver" e que "nenhum sofrimento pode ser imposto sobre coisas vivas para satisfazer o desejo dos homens". Muitos, contudo, consideravam exagerada esta visão da "coisa viva". Não pelo facto de o filósofo defender intransigentemente a vida, mas por valorar de igual modo formas de vida aparentemente tão díspares como a do Homem e a do insecto, a do cão e a do micróbio.
Em "O Cão do Filósofo", o alemão Raimond Gaita conta-nos como gastou mais de dois mil dólares em despesas veterinárias depois de Gypsy, a cadela da família, ter sido atropelada e do quanto ele e a mulher tiveram de trabalhar ainda mais para poder suportar essas despesas. E questiona-se: "Para pagar despesas médicas das crianças, venderia tudo e trabalharia até à morte se fosse necessário. Mas por um cão?" E continua: "É verdade que, se tivéssemos vendido camisas para cuidar de um peixe-dourado, alguém poderia dizer: "Por um gato ou por um cão, compreenderia. Agora por um peixe?".
Esta semana, na sequência da publicação da Portaria nº 1226/2009 - que proíbe aos proprietários de circos a compra e reprodução de animais selvagens e exóticos -, voltaram a estar no centro do debate público conceitos como bem-estar e saúde animal, direitos dos animais e a relação homem/animal. Mas o que se entende por "bem-estar animal"? Têm os animais direito... a direitos? Que animais? Mas não somos todos, humanos incluídos, animais?
Em termos biológicos, parece não restarem dúvidas de que todos descendemos de um mesmo antepassado. Ou, como refere o biólogo José Feijó, investigador principal do Instituto Gulbenkian de Ciência, "aquilo que nos constitui não é basicamente diferente de uma bactéria, de um fungo ou de um animal". Há 150 anos, Charles Darwin e a sua teoria evolucionista vieram afirmar isso mesmo, colocando em causa o criacionismo religioso, de raiz judaico-cristã, segundo a qual todas as espécies foram criadas por Deus.
O desenvolvimento da ciência, nomeadamente da genética com os seus estudos do ADN, faculta-nos cada vez mais provas desse antepassado comum. Se assim é, por que razão nos consideramos animais à parte, superiores? "No caso dos humanos, houve uma expansão de uma zona específica do cérebro que nos deu um tratamento diferente das emoções e mecanismos abstractos, como a liguagem e a cultura, mas isso não nos coloca numa posição à parte", explica José Feijó.
Vítor Almada, responsável científico da Unidade de Investigação em Eco-Etologia do ISPA (Instituto Superior de Psicologia Aplicada), sublinha que "a nossa espécie é um animal entre muitos". E recorda que há também outras espécies animais, nomeadamente os mamíferos, que "também sonham e que também pensam". "A diferença coloca-se no tipo de pensamento. Enquanto nós, humanos, devido ao termos uma linguagem apoiada em termos abastractos, podemos pensar de forma reflexiva, ou seja, jogar com o mundo interior/exterior e com os pensamentos/memórias, nos outros animais existe apenas o pensamento prático, que o Homem também tem", diz.
Resta-nos ainda perguntar: os animais também sentem? Também têm sentimentos? No século XIX, nas aulas de anatomia, era comum abrirem-se os animais vivos, sem anestesia, por se considerar que estes não passavam de simples máquinas, ou seja, que os animais não tinham capacidade para sentir dor. Mas já o filósofo britânico Jeremy Bentham (século XVIII) defendia que a questão não é "eles [os animais] pensam? ou eles [os animais] falam? A questão é: eles sofrem?"
"Dor, medo, satisfação, são situações pelas quais os animais também passam", garante Vítor Almada. "O problema foi que, até há cerca de meio século atrás, os cientistas receavam estar a projectar nos animais sentimentos humanos". Uma vez mais, também aqui a ciência, através da observação dos sinais exteriores dos animais, nos permite afirmar que estes são igualmente dotados da capacidade de sofrer, de sentir, de criar expectativas. "Quanto maiores são as capacidades cognitivas do animal, maior é a sua capacidade de sofrer", diz Vítor Almada.
Isto não explica, no entanto, por que motivo mantemos relações tão diferentes com um cão ou com uma minhoca, ou com um cavalo ou com um peixe. "Quanto mais variada é a capacidade de expressão de um animal, mais este se encaixa nos nossos padrões", refere professor agregado do ISPA. "Um cão tem um tipo de sociabilidade parecida com a nossa e, por isso, é mais fácil termos uma relação estreita com ele".
Ainda de acordo com este investigador, intituivamente, temos a ideia de que há animais mais importantes do ponto de vista moral do que outros. ""Não é por acaso que já se realizaram diversas manifestações contra as touradas e a caça, mas nunca vi um protesto contra a pesca desportiva, por exemplo. E os peixes também sofrem", afirma.
Esta diferenciação leva-nos, por vezes, a cair no exagero. Como o de tratarmos algumas espécies animais como se de seres humanos se tratassem (há quem compare o especismo, a discriminação baseada na espécie, ao racismo). Hoje em dia, há hotéis de luxo, companhias aéreas, lojas de roupa e peças de joalharia, restaurantes e festas de aniversário exclusivas para cães e gatos.
"Esses são fenómenos assustadores, de total irracionalidade", lamenta Vítor Almada. "O cão ou o gato não têm noção de que fazem anos. O que as pessoas fazem, nestes casos, é projectarem nos animais a falta de amigos, de afecto, a solidão em que vivem. Isso a mim choca-me. Não pode haver uma sociedade justa com a subversão das relações entre homens, quanto mais para os animais".
(Por Fátima Mariano. In “Jornal de Notícias”, 18 de Outubro de 2009)
Albert Schweitzer (1875-1965), médico e filósofo alsaciano, percursor da bioética e Prémio Nobel da Paz 1952, foi muitas vezes alvo de troça por parte dos seus contemporâneos por ter o cuidado de não pisar insectos e evitar matar os micróbios que observava através do microscópio.
Schweitzer defendia que "tudo o que é vivo tem o direito de viver" e que "nenhum sofrimento pode ser imposto sobre coisas vivas para satisfazer o desejo dos homens". Muitos, contudo, consideravam exagerada esta visão da "coisa viva". Não pelo facto de o filósofo defender intransigentemente a vida, mas por valorar de igual modo formas de vida aparentemente tão díspares como a do Homem e a do insecto, a do cão e a do micróbio.
Em "O Cão do Filósofo", o alemão Raimond Gaita conta-nos como gastou mais de dois mil dólares em despesas veterinárias depois de Gypsy, a cadela da família, ter sido atropelada e do quanto ele e a mulher tiveram de trabalhar ainda mais para poder suportar essas despesas. E questiona-se: "Para pagar despesas médicas das crianças, venderia tudo e trabalharia até à morte se fosse necessário. Mas por um cão?" E continua: "É verdade que, se tivéssemos vendido camisas para cuidar de um peixe-dourado, alguém poderia dizer: "Por um gato ou por um cão, compreenderia. Agora por um peixe?".
Esta semana, na sequência da publicação da Portaria nº 1226/2009 - que proíbe aos proprietários de circos a compra e reprodução de animais selvagens e exóticos -, voltaram a estar no centro do debate público conceitos como bem-estar e saúde animal, direitos dos animais e a relação homem/animal. Mas o que se entende por "bem-estar animal"? Têm os animais direito... a direitos? Que animais? Mas não somos todos, humanos incluídos, animais?
Em termos biológicos, parece não restarem dúvidas de que todos descendemos de um mesmo antepassado. Ou, como refere o biólogo José Feijó, investigador principal do Instituto Gulbenkian de Ciência, "aquilo que nos constitui não é basicamente diferente de uma bactéria, de um fungo ou de um animal". Há 150 anos, Charles Darwin e a sua teoria evolucionista vieram afirmar isso mesmo, colocando em causa o criacionismo religioso, de raiz judaico-cristã, segundo a qual todas as espécies foram criadas por Deus.
O desenvolvimento da ciência, nomeadamente da genética com os seus estudos do ADN, faculta-nos cada vez mais provas desse antepassado comum. Se assim é, por que razão nos consideramos animais à parte, superiores? "No caso dos humanos, houve uma expansão de uma zona específica do cérebro que nos deu um tratamento diferente das emoções e mecanismos abstractos, como a liguagem e a cultura, mas isso não nos coloca numa posição à parte", explica José Feijó.
Vítor Almada, responsável científico da Unidade de Investigação em Eco-Etologia do ISPA (Instituto Superior de Psicologia Aplicada), sublinha que "a nossa espécie é um animal entre muitos". E recorda que há também outras espécies animais, nomeadamente os mamíferos, que "também sonham e que também pensam". "A diferença coloca-se no tipo de pensamento. Enquanto nós, humanos, devido ao termos uma linguagem apoiada em termos abastractos, podemos pensar de forma reflexiva, ou seja, jogar com o mundo interior/exterior e com os pensamentos/memórias, nos outros animais existe apenas o pensamento prático, que o Homem também tem", diz.
Resta-nos ainda perguntar: os animais também sentem? Também têm sentimentos? No século XIX, nas aulas de anatomia, era comum abrirem-se os animais vivos, sem anestesia, por se considerar que estes não passavam de simples máquinas, ou seja, que os animais não tinham capacidade para sentir dor. Mas já o filósofo britânico Jeremy Bentham (século XVIII) defendia que a questão não é "eles [os animais] pensam? ou eles [os animais] falam? A questão é: eles sofrem?"
"Dor, medo, satisfação, são situações pelas quais os animais também passam", garante Vítor Almada. "O problema foi que, até há cerca de meio século atrás, os cientistas receavam estar a projectar nos animais sentimentos humanos". Uma vez mais, também aqui a ciência, através da observação dos sinais exteriores dos animais, nos permite afirmar que estes são igualmente dotados da capacidade de sofrer, de sentir, de criar expectativas. "Quanto maiores são as capacidades cognitivas do animal, maior é a sua capacidade de sofrer", diz Vítor Almada.
Isto não explica, no entanto, por que motivo mantemos relações tão diferentes com um cão ou com uma minhoca, ou com um cavalo ou com um peixe. "Quanto mais variada é a capacidade de expressão de um animal, mais este se encaixa nos nossos padrões", refere professor agregado do ISPA. "Um cão tem um tipo de sociabilidade parecida com a nossa e, por isso, é mais fácil termos uma relação estreita com ele".
Ainda de acordo com este investigador, intituivamente, temos a ideia de que há animais mais importantes do ponto de vista moral do que outros. ""Não é por acaso que já se realizaram diversas manifestações contra as touradas e a caça, mas nunca vi um protesto contra a pesca desportiva, por exemplo. E os peixes também sofrem", afirma.
Esta diferenciação leva-nos, por vezes, a cair no exagero. Como o de tratarmos algumas espécies animais como se de seres humanos se tratassem (há quem compare o especismo, a discriminação baseada na espécie, ao racismo). Hoje em dia, há hotéis de luxo, companhias aéreas, lojas de roupa e peças de joalharia, restaurantes e festas de aniversário exclusivas para cães e gatos.
"Esses são fenómenos assustadores, de total irracionalidade", lamenta Vítor Almada. "O cão ou o gato não têm noção de que fazem anos. O que as pessoas fazem, nestes casos, é projectarem nos animais a falta de amigos, de afecto, a solidão em que vivem. Isso a mim choca-me. Não pode haver uma sociedade justa com a subversão das relações entre homens, quanto mais para os animais".
Do ponto de vista jurídico, o assunto é igualmente problemático complexo. Para sustentar os seus pontos de vista, muitas organizações ligadas à defesa dos animais invocam a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, aprovada pela Unesco, em 1978.
Mas, como explica André Pereira, professor assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, "não se trata de uma convenção, não é um direito vinculativo - como, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem -, que se possa exercer directamente nos tribunais. Por ter sido elaborada sob a égide da Unesco tem alguma força jurídica, mas não tem força perante a comunidade internacional".
A ciência dos direitos dos animais terá nascido como consequência do surgimento de grupos de defesa desses mesmos direitos, embora seja difícil situar no tempo a origem desse movimento. Anabela Pinto, investigadora na Universidade de Cambridge na área do comportamento e bem-estar animal, aponta como uma das primeiras leis elaboradas para a defesa dos direitos dos animais aquela que foi aprovada no Reino Unido em 1822, relativa ao tratamento do gado doente, depois de vários protestos dos londrinos indignados com a forma como o gado era transportado pela cidade.
Em termos de protecção jurídica do animal, o mundo caminha em diversos sentidos. André Pereira refere que a doutrina tradicional, de raíz romana, como é a portuguesa, faz a distinção entre sujeitos (pessoas) e coisas (animais). O que significa, em termos simplistas, que quem matar um animal indemniza o proprietário deste porque causou um dano no seu património. Ou, em casos de dívidas, um animal considerado valioso, poderá ser penhorado tal como uma casa.
Há países, contudo, onde a protecção jurídica dos animais está mais avançada, como são o caso da Alemanha, Brasil e Suíça, em que os direitos dos animais estão consagrados na própria Constituição. Neste último, por exemplo, os animais não são considerados bens penhoráveis e numa situação de divórcio, são levados ao psicólogo, que decide com qual dos cônjuges o animal deve ficar.
Mas, como explica André Pereira, professor assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, "não se trata de uma convenção, não é um direito vinculativo - como, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem -, que se possa exercer directamente nos tribunais. Por ter sido elaborada sob a égide da Unesco tem alguma força jurídica, mas não tem força perante a comunidade internacional".
A ciência dos direitos dos animais terá nascido como consequência do surgimento de grupos de defesa desses mesmos direitos, embora seja difícil situar no tempo a origem desse movimento. Anabela Pinto, investigadora na Universidade de Cambridge na área do comportamento e bem-estar animal, aponta como uma das primeiras leis elaboradas para a defesa dos direitos dos animais aquela que foi aprovada no Reino Unido em 1822, relativa ao tratamento do gado doente, depois de vários protestos dos londrinos indignados com a forma como o gado era transportado pela cidade.
Em termos de protecção jurídica do animal, o mundo caminha em diversos sentidos. André Pereira refere que a doutrina tradicional, de raíz romana, como é a portuguesa, faz a distinção entre sujeitos (pessoas) e coisas (animais). O que significa, em termos simplistas, que quem matar um animal indemniza o proprietário deste porque causou um dano no seu património. Ou, em casos de dívidas, um animal considerado valioso, poderá ser penhorado tal como uma casa.
Há países, contudo, onde a protecção jurídica dos animais está mais avançada, como são o caso da Alemanha, Brasil e Suíça, em que os direitos dos animais estão consagrados na própria Constituição. Neste último, por exemplo, os animais não são considerados bens penhoráveis e numa situação de divórcio, são levados ao psicólogo, que decide com qual dos cônjuges o animal deve ficar.