domingo, 14 de setembro de 2008

Portugal, República das Bananas (Parte [...])

O filme não é novo, trata-se apenas de uma sequela. Na verdade, trata-se apenas de mais uma sequela, depois já de se terem registado muitas outras. É, por isso, a parte já não numerada – de tanto se desdobrar em episódios subsequentes – de um filme (real e não ficcional) que retrata o Estado anedótico que se tornou o Estado Português, que tem estado a ser sistematicamente esvaziado de autoridade e de respeitabilidade por quem o governa e representa, desde as mais altas esferas, às mais pequenas e mais locais instâncias. Atentemos aos factos.

Em Monsaraz, mais um touro foi morto ontem à tarde, tal como tem acontecido todos os anos. E, tal como em todos os anos anteriores, a Inspecção Geral das Actividades Culturais (IGAC) indefere o requerimento da comissão organizadora deste morticínio (que, mais uma vez, incorpora a Misericórdia local), não outorgando a esta tourada de morte o estatuto de lícita previsto nas leis que vieram a resolver, de forma facilitista, irresponsável e eticamente aberrante, o problema dos Governos de António Guterres e José Manuel Durão Barroso. Tal como nos anos anteriores, a IGAC sabia que a comissão promotora deste massacre iria matar o touro mesmo assim. Novamente como nos anos anteriores, a GNR sabia-o também. Ora, se as autoridades sabem que um ilícito está para ocorrer, que tem sido cometido de forma repetida, consciente e deliberada, ano após ano, no mesmo local, na mesma data, nas mesmas circunstâncias, o que deveriam fazer? O que se esperaria que fizessem? Que fizessem o trabalho de instituição da disciplina estabelecida na lei, claro, prevenindo diligentemente e sem hesitações um ilícito que sabem que acontecerá. E o que aconteceu, uma vez mais? Nada que se assemelhe a isso. A GNR limitou-se a esperar que o ilícito acontecesse – um touro a ser morto à facada por debaixo de uma capa (num jogo daquele chico-espertismo que ainda está impregnado em muitas mentes portuguesas) com vista a, supostamente, impedir que se testemunhe directamente o acto de matar o touro... –, para depois “fazer esforços” para identificar os prevaricadores e os promotores da infracção.

A conclusão é óbvia: Barrancos fez escola. Tal como se disse na altura (e a ANIMAL disse-o muitas vezes, desde logo aos decisores da República), Barrancos faria escola. Quando, ano após ano, uma lei que, na altura, proibia a morte de touros em touradas como crime punível com pena de 3 anos de prisão, várias decisões judiciais que reforçavam a proibição prevista na lei e pelo menos uma recomendação do provedor de justiça para que a lei e as decisões judiciais fossem cumpridas, foram violadas de forma pública, avisada, consciente, deliberada, alegre e desafiadora, com a complacência do Governo, que mandava a GNR ir vigiar o trânsito a 50km da vila de Barrancos, enquanto os touros eram mortos no centro da vila, não se poderia esperar que o Estado de Direito se mantivesse de pé, intocado. Pior foi quando, depois de muitas tentativas para legalizar as touradas de morte em Barrancos, o Presidente da República, o Governo e o Parlamento de então, em 2002, formaram uma aliança para resolver o problema, legalizando de facto as touradas de morte, alegadamente apenas para o caso de Barrancos (embora não só, como se veio, na prática, a verificar), passando claramente a mensagem de que o crime compensa. E compensou. O Estado de Direito é que foi, mais uma vez, severamente abalado – e, desta vez, de forma muitíssimo mais grave, tendo em conta que se fez e aprovou uma lei que veio premiar e legitimar a prática repetida de crimes graves e horrorosos. Claro que muitas outras localidades onde a mesma barbárie era apreciada viriam reclamar o mesmo direito – o suposto e mórbido direito de matar que entendiam ter –, tal como começaram a fazer logo na altura. E, logo na altura, mortes de touros começaram a acontecer ilicitamente (mesmo já com a “lei de Barrancos” aprovada supostamente apenas para Barrancos) em várias localidades, nomeadamente em Monsaraz. O que fizeram o Governo e as autoridades (as mesmas entidades que disseram que Barrancos seria uma excepção – mas uma excepção única) acerca disso? Nada. E assim tem sido, ano após ano.

E Barrancos fez escola a tal ponto que, muitos anos depois do chamado “caso Barrancos”, as suas raízes ainda vão dando os seus envenenados frutos. Completou-se ontem à noite uma semana desde que a GNR de Faro seguiu o exemplo da “escola de Barrancos”, fazendo de conta que a decisão judicial que tinha em mãos para fazer cumprir não estabelecia o que, de facto, estabelecia. As entidades promotoras do “rodeio” de Estói que o Tribunal de Faro havia proibido nessa decisão judicial – a Junta de Freguesia de Estói, o Grupo Amigos do Cavalo de Estói e a Megalqueva / Associação Portuguesa de Rodeo – fizeram de conta que a dita decisão judicial não se lhes aplicava, com a complacência da GNR, que se pôs a interpretar a matéria de facto da providência cautelar em causa, não fazendo caso algum da única parte que lhe interessava e que devia fazer cumprir: a da decisão.

Entretanto, todos os dias, cidadãs e cidadãos por todo o país recorrem às autoridades policiais e / ou veterinárias e administrativas, reportando-lhes casos de negligência e/ou violência activa contra animais. Todos os dias, a esmagadora maioria destas cidadãs e cidadãos não recebe qualquer resposta. Algumas pessoas chegam a receber respostas tortas e há até autoridades que zombam das pessoas e das reclamações que fazem. No cômputo geral, poucas são as vezes em que as autoridades respondem de forma pronta, diligente, interessada e pró-activa, sendo que, quando tal acontece, isso deve-se bastante mais à sensibilidade e sentido do dever dos agentes aos quais os casos são reportados, do que a um procedimento-padrão das autoridades portuguesas. Ainda menos são as vezes em que há de facto consequências boas para os animais que são vítimas da negligência e/ou violência reportada e consequências más para os indivíduos que cometem as infracções em causa.

Na verdade, algo de ainda mais grave e injusto acontece. As pessoas que, preocupadas, cuidam de animais que deambulam pelas ruas passam muito do seu tempo a tentar evitar as autoridades municipais, que por norma são muito diligentes para limparem as ruas de animais e para administrarem sanções a quem cuida destes. As pessoas que, apesar de terem cuidados sanitários, de saúde e bem-estar excelentes com os seus animais e que têm simplesmente mais um animal em casa do que o limite estabelecido por lei sabem bem o que é viver apavoradas com medo da diligência das autoridades municipais, se estas descobrirem que existe mais um gato ou mais um cão em sua casa do que aquele máximo legalmente previsto. Estas pessoas sabem que, não raro, as autoridades admoestam estas pessoas e advertem-nas para que se “desfaçam” dos animais que têm a mais (mesmo que estejam em excelentes condições), sob pena de, não o fazendo, as mesmas autoridades obterem rapidamente e sem pestanejar um mandado judicial para retirar os animais em excesso e para levá-los para o canil/gatil municipal – onde, já se sabe, serão mortos. As pessoas que hoje estão a fazer esforços ainda maiores para salvar cães de raça pit bull e das outras raças condenadas e diabolizadas pelo Estado sabem bem que devem temer este Estado e as suas autoridades, mesmo que tenham cuidados excelentes com os animais e que estejam apenas apostadas em fazer o bem: salvar as vidas destes pobres cães. Em todos estes casos, o Estado é rápido, interessado, pró-activo e diligente para perseguir e penalizar quem faz o bem, tentando diariamente, de forma generosa e compassiva, ajudar os animais que o mesmo Estado condena, de uma maneira ou de outra. Contra quem comete barbaridades horrendas proibidas por lei, o Estado é brando, tremendamente permissivo ou mesmo ausente.

Em Portugal, há, então, cidadãs e cidadãos de primeira e outras/os de segunda.

Os de primeira, apesar das infracções que cometem (às quais correspondem actos de crueldade eventualmente extrema e com traços preocupantes de psicopatia – o FBI já estudou extensivamente, de resto, a ligação íntima entre a crueldade contra animais não-humanos e a crueldade contra humanos e o facto de todos os grandes assassinos em série terem começado por torturar e matar animais não-humanos antes de começarem a fazer o mesmo a humanos), recebem a compreensão, a desculpabilização e a permissividade do Estado e dos seus organismos.

Os de segunda, apesar do bem que fazem e que tentam fazer (fazendo grandes esforços pessoais, a vários níveis, para salvar vidas de animais e para lhes proporcionar a protecção e os cuidados que merecem), são desprezados pelo Estado, quando não são ridicularizados por alguns dos seus agentes, podendo até ser perseguidos, admoestados, multados e, quem sabe, presos, apenas por quererem e se esforçarem por evitar que vítimas inocentes sofram, sejam violentadas e mortas, num país onde, para estes, a justiça nunca chega.

Para os cidadãos de primeira, vale tudo. Portugal é uma autêntica República das Bananas onde se pode fazer o que se quer, quando se quiser e como se quiser, desobedecer a decisões judiciais, ameaçar as autoridades caso pensem exercer a sua autoridade, etc., vivendo-se na mais pura e confortável das impunidades, sendo até realista esperar a colaboração – através da inacção ou até da mudança das leis – das autoridades para que o vale-tudo se possa ir concretizando.

Para os cidadãos de segunda, Portugal é um Estado eventualmente implacável, eventualmente perseguidor, iníquo, insensível e injusto, não só para os animais que, de uma maneira ou de outra, condena, mas também para estes cidadãos de segunda que com estes animais se preocupam e que em defesa destes agem, para seu próprio prejuízo.

Contudo, não tem que ser assim. Não pode continuar a ser assim. Se quiser mudar o actual panorama negro da realidade portuguesa no campo da protecção dos animais (que, pela sua abrangência, toca quase todas as áreas da vida pública), por favor participe na Marcha Nacional Por um Código de Protecção dos Animais Moderno, Eficaz, Progressista e Justo e Pelo Fim dos Crimes Sem Castigo que diariamente são cometidos contra os animais no nosso país.

No dia 4 de Outubro (Sábado), às 15h, em frente à Praça de Touros do Campo Pequeno (de onde arrancará o desfile até ao Parlamento), participe nesta marcha decisiva. É a sua oportunidade para vir também denunciar e condenar o que está mal em Portugal nesta área e, sobretudo, para vir reclamar à Assembleia da República que aprove a lei de protecção dos animais necessária e urgente para fazer com que o Estado Português venha finalmente a ser a “pessoa de bem” para com os animais e para com a maioria dos cidadãos que se preocupa com eles. No dia 4 de Outubro – Dia Mundial do Animal –, não falte a esta iniciativa de importância vital para o futuro dos animais em Portugal.

Para mais informações ou para se inscrever no transporte gratuito organizado pela ANIMAL a partir de várias zonas do país, por favor contacte a ANIMAL, através do campanhas@animal.org.pt ou do 96 235 81 83.