Por Miguel Moutinho, Presidente da ANIMAL
As declarações de Paulo Rangel, líder parlamentar do PSD, ao “Sol” na entrevista que deu a este semanário e que foi publicada neste jornal no passado Sábado despoletou uma forte reacção crítica da ANIMAL e uma onda de protestos que têm estado a ser dirigidos à Presidente do PSD e ao Presidente do Grupo Parlamentar do PSD, que, num exótico sinal de democracia e abertura ao público e aos eleitores/cidadãos, têm estado a apagar as mensagens que têm recebido ainda antes de as lerem... talvez para virem, dentro de dias, mais uma vez lamentar a falência do actual sistema político representativo e a distância que está criada entre eleitos e eleitores.
E, como não poderia deixar de ser, também a posição da ANIMAL – que, ao contrário da de Paulo Rangel, é passível de ser racionalmente defendida com sucesso – está a gerar reacções diversas e a criar discussão. Importa dizer que tal é, do ponto de vista da ANIMAL, muito bom e importante, uma vez que a ANIMAL defende exactamente uma postura de crítica racional e aberta – que acolhe o debate racional e informado como meio privilegiado para se poder alcançar conclusões verdadeiras acerca do que está em discussão – e procura cultivá-la e fomentá-la, além de a praticar, pelo que pretende sempre lançar e travar discussões racionais que possam vir a aproximar-nos mais do que é a verdade ou a justiça, do que é mais ético. Consequentemente, pretendemos, isso sim, deixar claro que a ANIMAL não foge a discussões e que antes as enfrenta com gosto e interesse, tal como agora o está a fazer.
É neste contexto que se torna especialmente importante explicar por que razão as declarações de Paulo Rangel suscitaram e continuam a suscitar tanta crítica e, mais do que isso, por que razão a visão de Paulo Rangel acerca dos animais e da suposta importância menor destes é errada e carece de fundamentos. Esse é o propósito deste esclarecimento (que não pretende ser demasiadamente técnico nem exaustivo, pois este não seria o contexto certo para tal) que, embora possa ser longo (e agradecemos desde já a paciência de quem se disponha a lê-lo), é fundamental para este debate, cuja abrangência e implicações ultrapassam monumentalmente o “episódio Paulo Rangel”, embora este tenha vindo a ser imprevistamente oportuno para que esta discussão seja travada.
Será consensual afirmar que a “dignidade” de um ser será a respeitabilidade moral que ele detém. Neste sentido, quando afirmamos que um ser tem dignidade, estamos a afirmar que ele não pode ser tratado de qualquer maneira, que o modo como ele é tratado não é indiferente. Um ser que tenha dignidade deve, pois, ser tratado de um modo que tenha em consideração e que esteja de acordo com a sua dignidade, nomeadamente considerando o conjunto de características que ele possui que o levam a ter interesses elementares que vêm a traduzir-se, na esfera da moral, em direitos fundamentais, compondo, assim, a sua dignidade moral.
O processo de aferição da dignidade de um ser é um processo de avaliação ética, necessariamente racional. Não é um exercício de opinião livre, meramente subjectivo, cativo das variáveis introduzidas pelas particularidades de cada avaliador. Trata-se, isso sim, de um processo de avaliação que deve ser feito com base na melhor informação disponível acerca de como é esse ser, de modo a determinar se as características deste preenchem os critérios morais para o reconhecimento da dignidade de um ser e se, no caso de tal acontecer, há, então, razões que façam com que esse ser seja digno.
Segue-se daqui uma implicação imediata – que a humanidade já aprendeu mas ainda não compreendeu em toda a sua extensão: a cor de pele, o género ou a identidade sexual desse ser, entre outras características moralmente irrelevantes entre as quais se inclui também a espécie a que esse ser pertence, não contam para esta equação. O que conta é o conjunto de características que ele possui e que o poderão fazer moralmente importante e digno – ou nada importante. Tal deita por terra a validade de qualquer preconceito racista, sexista, homofóbico, especista ou outro como base aceitável para se decidir sobre o estatuto moral de um ser. Do mesmo modo que ser branco, amarelo ou preto (ou verde, por hipótese) não importa de todo em termos morais, e do mesmo modo que ser homem ou mulher, heterossexual, homossexual, bissexual, assexual ou o que for, em nada relevam para determinar a respeitabilidade moral de um indivíduo, também a mera pertença a uma espécie, ou seja, o facto de ser-se humano ou cão ou porco ou galinha, não determina, por si só, se ou que estatuto moral deve um indivíduo ter.
Na verdade, há um conjunto de características cuja relevância moral facilmente se consegue perceber e que facilmente podem aspirar a ser universalmente aceites porque são universalmente válidas, que servem de base para o reconhecimento da importância moral de um ser. A primeira e mais fundamental destas características é a senciência, ou seja, a capacidade física e mental que um ser tem para experienciar subjectivamente aquilo que lhe acontece. Um ser senciente é sensível à dor e ao prazer, pode sentir conforto ou desconforto e está subjectivamente exposto a estímulos que recebe como positivos ou negativos, em função dos quais se sente bem ou mal. Um ser senciente tem experiências não apenas físicas mas também conscientes (mais ou menos complexas) do que lhe acontece. É um sujeito para o qual o que lhe acontece e o modo como é tratado faz diferença. É um sujeito que pode ser bem tratado ou mal tratado e que tem interesse em sentir-se livre de qualquer tipo de sofrimento ou desconforto, ao mesmo tempo que tem interesse em ter experiências positivas, tais como o prazer e o conforto, entre outras. Um ser senciente, independentemente da complexidade da sua mente, é um indivíduo. E, justamente por ser um indivíduo (com uma história), para quem o que lhe acontece faz toda a diferença, que tem interesses fundamentais perfeitamente reconhecíveis (tais como o interesse em não ser torturado, o interesse em não ser aprisionado e o interesse em não ser morto) e a quem a vida pode correr bem ou mal, um ser senciente possui as características elementares que o habilitam a ser considerado um ser moralmente respeitável, ou seja, um ser possuidor de dignidade – em relação ao qual a maneira como nos comportamos deve necessariamente ser moralmente correcta, em função dessa dignidade.
Ora, a senciência é uma característica ostensivamente detida pela maior parte dos animais, certamente pelo menos pelos vertebrados, cefalópodes (ex.: polvos) e decápodes (ex.: lagostas). Se um ser é senciente, ou seja, se é possuidor de todas estas características e destes interesses elementares que as mesmas criam num indivíduo, esse ser vem a ter dignidade moral como consequência de ser como é e de, assim, importar moralmente enquanto indivíduo, pertença ele à espécie a que pertencer, tenha muitos ou poucos pêlos no corpo, caminhe sobre duas ou quatro pernas (ou não caminhe, no caso dos peixes, por exemplo). Chegamos, então, à conclusão de que pelo menos grande parte dos animais (por oposição às plantas, que não são seres sencientes) são seres possuidores de dignidade moral intrínseca, ou seja, a dignidade moral deles existe e justifica-se pelas características que eles próprios possuem – e não extrínsecas, como sugeriu Paulo Rangel, alegando, sem explicar porquê, que os humanos é que têm o dever de respeitar os animais sem que eles tenham o direito a serem respeitados.
Colocam-se, entretanto, duas outras questões que precisamos de resolver. (1) Convencione-se, então, depois desta conclusão, que pelo menos todos os animais que são sencientes (deixando de parte os que não serão, como será o caso dos mosquitos, por exemplo) têm dignidade moral e direitos fundamentais. Como podem eles ter direitos se não têm deveres e se eles próprios não respeitam os direitos uns dos outros quando caçam, por exemplo? (2) Ainda que os animais que não são humanos possam ter dignidade e direitos fundamentais, não será verdade que, mesmo assim, estão numa esfera de importância moral menor do que o patamar de importância moral em que se encontram os humanos?
Respondendo à primeira questão (1), precisamos primeiramente de definir se a detenção e o gozo (ou a titularidade, numa linguagem mais jurídica) de direitos dependem da detenção e do cumprimento de deveres, como se defende numa perspectiva contratualista.
Segundo esta visão, só os seres que têm deveres (que podem compreender o conceito de dever e que podem agir em função dele) podem ter direitos. E, segundo esta visão, esse será o caso de todos os humanos. No entanto, esta visão está factualmente errada porque há muitos humanos que, seja temporária ou permanentemente, não compreendem o conceito de dever, não podem agir em função dele e deles não se espera nem se lhes exige o cumprimento de qualquer dever. A um bebé, a um senil, a um comatoso ou a um humano portador de uma qualquer deficiência mental não é exigido qualquer comportamento moralmente correcto. São humanos que ficam de fora da esfera dos deveres morais, por não lhe estarem vinculados justamente porque não os entendem. No entanto, não ficam nem podem ficar de fora da esfera dos direitos morais, uma vez que continuam a possuir as mesmas características e os mesmos interesses elementares que todos os outros humanos (os que podem compreender e cumprir deveres) possuem, do que se segue que não lhes podem legitimamente ser negados ou retirados quaisquer direitos dos quais se mantêm titulares. Conclui-se, então, que esta visão deve ser rejeitada não só porque assenta no pressuposto falso de que todos os humanos podem, contratualmente, gozar de direitos porque podem cumprir deveres, como é também injusta e discriminatória, uma vez que, se for aceite e implementada, deixa de fora muitos humanos (e todos os animais não-humanos) que, não podendo embora compreender e cumprir deveres, continuam a merecer ser titulares de direitos. Estes são, como lhes chama o filósofo Tom Regan, pacientes morais, em relação aos quais nós, os agentes morais, temos deveres mas dos quais não podemos esperar retorno em termos de cumprimento de deveres.
Ainda respondendo à segunda parte da primeira questão (1), precisamos de determinar se o comportamento amoral (fora da moral) entre animais não-humanos (como acontece na caça, quando uma leoa mata uma gazela, por exemplo) deve ditar que, por consequência, estes fiquem totalmente fora da moral e não possam ser titulares de direitos por nem sequer respeitarem os direitos uns dos outros. A resposta a esta questão é bastante simples e encontra-se na própria questão. É exactamente porque os animais não-humanos vivem num mundo e têm um comportamento amoral (fora da moral), em que a predação faz, além do mais, parte das suas necessidades de sobrevivência (o que não acontece com os humanos, que podem ser integralmente vegetarianos e serem mais saudáveis com uma dieta exclusivamente vegetariana do que serão se consumirem produtos animais), que não estão sujeitos a qualquer dever moral, que não compreendem, do mesmo modo que não compreendem os direitos morais que uns e outros terão. Ao contrário da espécie humana, que, entre outros sistemas de regras pelos quais se rege, regula-se também por códigos morais (que são criações intelectuais e sociais humanas e que, enquanto tal, não existem noutras sociedades animais) e pode reflectir moralmente acerca da correcção e justeza de um acto, de uma decisão, de um qualquer comportamento, as outras espécies animais não o fazem porque não o podem fazer – pelo menos não como os humanos o fazem. E isso não é melhor nem é pior, é apenas diferente, em nada relevando para atribuição de um estatuto moral especial aos animais humanos. E isso remete-nos para a resposta à segunda questão (2).
Respondendo agora à segunda questão (2), somos chamados a reflectir sobre se os humanos terão algo de especial que os distancia das outras espécies animais a ponto de lhes conferir um estatuto moralmente superior, ainda que aos outros animais sejam reconhecidos direitos e/ou dignidade. Somos chamados a reflectir sobre a “separação ontológica” que Paulo Rangel afirma fazer entre os humanos e os outros animais. Que fundamentos poderemos encontrar para esta separação? O que poderá fazer com que ela seja válida?
Se adoptarmos uma visão religiosa (eventualmente católica, entre outras que poderão sugerir o mesmo) segundo a qual os humanos estão no topo da criação e todos os outros animais terão sido criados apenas para servirem os humanos, assim como a Terra teria sido criada apenas para servir de lar aos humanos e para que estes dela pudessem dispor de acordo com as suas conveniências, talvez essa separação possa, desta perspectiva, fazer sentido.
No entanto, se virmos esta questão mais uma vez sob uma perspectiva cientificamente rigorosa, informada e desprovida de qualquer preconceito religioso, ou seja, se virmos esta questão sob uma perspectiva que é sempre válida e universalmente compreensível, independentemente de qualquer crença religiosa (do que se segue que tanto terá condições para ser aceite por católicos, judeus, muçulmanos ou hindus, quanto para ser aceite por ateus), não encontramos nenhum fundamento para essa tal “separação ontológica”, para esse suposto fosso que nos distancia radicalmente dos outros animais, dando-nos uma importância que estes últimos nunca teriam. Se para chegarmos aos melhores, mais justos e mais universalizáveis princípios éticos devemos fundar-nos numa ética racional e cientificamente informada, num código moral que seja guiado pela razão e que seja atento à realidade material e não pela religião ou por qualquer preconceito ideológico, o mesmo devemos fazer para tratar a questão dos direitos dos animais e do estatuto destes. E para tal devemos lembrar-nos que, no passado, os mesmos preconceitos religiosos e/ou ideológicos levaram os humanos a encontrar “separações ontológicas” entre brancos, negros e índios, entre arianos e judeus, entre homens e mulheres. E, viemos a aprendê-lo e a compreendê-lo (embora talvez ainda não de forma suficiente), tal era errado. Essas “separações ontológicas” eram falsas e injustas. E felizmente foram expostas e dispensadas enquanto tal.
Charles Darwin ensinou-nos, há já mais de um século, algo que outros biólogos entretanto continuaram a ensinar-nos e que foram estudando e explicando melhor. Algo que nós, humanos, insistimos em desprezar ou fingir que não é verdade. O evolucionismo mostrou-nos que esse fosso entre humanos e outros animais não existe. Que essa diferença ou distância radical não existe. Cada espécie animal – estando a humana obviamente incluída nestas – evoluiu por selecção natural, mantendo, ao longo dos ciclos de reprodução, a passagem hereditária das características que habilitavam as espécies a sobreviver como as mais comuns, enquanto desapareciam ou rareavam as características que menos tornavam as espécies aptas para sobreviver. Assim, os humanos evoluíram por este processo do modo que lhes permitiu sobreviver enquanto espécie, tendo o mesmo acontecido com todas as outras espécies que não se extinguiram em resultado da selecção natural. Segue-se daqui que os humanos são óptimos a serem humanos mas seriam péssimos se tentassem ser galinhas. As galinhas são excelentes a ser galinhas mas seriam uma lástima se tentassem ser cães ou se fossem medidas segundo parâmetros caninos. E os cães (incluindo o Monty, de Paulo Rangel) são invencíveis a ser cães, mas falhariam rotundamente a um teste que tentasse medir as suas aptidões para serem humanos. E é exactamente esta medição que é errada. Um porco, uma vaca, um gorila, um salmão ou um cão não são melhores nem piores do que os humanos. Não são inferiores nem superiores. Não são mais evoluídos nem são menos evoluídos. São aquilo que vieram a ser dado o processo de evolução por que passaram e que fez com que sobrevivessem enquanto espécie. E o mesmo vale para os humanos. Por muito que infantilmente gostássemos de ser os melhores, os superiores, o cúmulo, não somos. Somos apenas humanos e isso não é mau nem desprestigiante. Não nos deve complexar de modo algum. Deve apenas tornar-nos mais humildes, mais cientes do nosso lugar na Terra e mais compassivos em relação a todos os outros animais.
Impõe-se a principal conclusão desta discussão. Os defensores dos direitos dos animais (que são também, obviamente e é importante destacá-lo, defensores dos direitos humanos) não pretendem reduzir o estatuto, importância ou dignidade dos humanos de modo algum. Pretendem apenas torná-lo mais claro, mais racional e mais justo. Pretendem apenas que os humanos percam esse perigoso complexo de superioridade que não tem qualquer fundamento e que tantos erros graves nos tem levado a cometer – incluindo contra os outros membros da nossa espécie. E, ao mesmo tempo, os defensores dos direitos dos animais pretendem, de igual modo, levar as sociedades humanas a reconhecerem e aceitaram as implicações da mesma teoria dos direitos fundamentais que faz com que a dignidade (animal) humana exista e que, pelos mesmos parâmetros, faz também com que a dignidade (animal) não-humana exista essencialmente nos mesmos termos. Não há, então, uma oposição entre a dignidade dos (animais) humanos e a dignidade dos (animais) não-humanos. Não há uma competição por direitos. Uns não têm que estar pior em benefício dos outros. Entre estes, moralmente iguais, ninguém vale mais do que ninguém, ao contrário do que afirmou Paulo Rangel.
Há, porém, uma parte nesta comunidade de iguais que tem sobre si um peso especial, que carrega solitariamente – o peso da responsabilidade que a razão humana traz consigo. E esse é um peso que devemos carregar de forma justa e positiva, sem a arrogância especista. Porém, se o fizermos com sentido de dever e de justiça, com compaixão e sentido de altruísmo, não será pesado de todo. E dignificar-nos-á. Será um ponto a favor da dignidade humana e será, ao mesmo tempo, um ponto a favor da dignidade animal. A realização do projecto moral humano e da elevação moral das sociedades humanas depende, como grandes pensadores já o afirmaram, não só do modo como os humanos se tratam a si mesmos mas também, e importantemente, do modo como os humanos tratam os outros animais. E é fundamental que Paulo Rangel e quem o acompanha no pensamento errado que este evidenciou compreendam isto.
As declarações de Paulo Rangel, líder parlamentar do PSD, ao “Sol” na entrevista que deu a este semanário e que foi publicada neste jornal no passado Sábado despoletou uma forte reacção crítica da ANIMAL e uma onda de protestos que têm estado a ser dirigidos à Presidente do PSD e ao Presidente do Grupo Parlamentar do PSD, que, num exótico sinal de democracia e abertura ao público e aos eleitores/cidadãos, têm estado a apagar as mensagens que têm recebido ainda antes de as lerem... talvez para virem, dentro de dias, mais uma vez lamentar a falência do actual sistema político representativo e a distância que está criada entre eleitos e eleitores.
E, como não poderia deixar de ser, também a posição da ANIMAL – que, ao contrário da de Paulo Rangel, é passível de ser racionalmente defendida com sucesso – está a gerar reacções diversas e a criar discussão. Importa dizer que tal é, do ponto de vista da ANIMAL, muito bom e importante, uma vez que a ANIMAL defende exactamente uma postura de crítica racional e aberta – que acolhe o debate racional e informado como meio privilegiado para se poder alcançar conclusões verdadeiras acerca do que está em discussão – e procura cultivá-la e fomentá-la, além de a praticar, pelo que pretende sempre lançar e travar discussões racionais que possam vir a aproximar-nos mais do que é a verdade ou a justiça, do que é mais ético. Consequentemente, pretendemos, isso sim, deixar claro que a ANIMAL não foge a discussões e que antes as enfrenta com gosto e interesse, tal como agora o está a fazer.
É neste contexto que se torna especialmente importante explicar por que razão as declarações de Paulo Rangel suscitaram e continuam a suscitar tanta crítica e, mais do que isso, por que razão a visão de Paulo Rangel acerca dos animais e da suposta importância menor destes é errada e carece de fundamentos. Esse é o propósito deste esclarecimento (que não pretende ser demasiadamente técnico nem exaustivo, pois este não seria o contexto certo para tal) que, embora possa ser longo (e agradecemos desde já a paciência de quem se disponha a lê-lo), é fundamental para este debate, cuja abrangência e implicações ultrapassam monumentalmente o “episódio Paulo Rangel”, embora este tenha vindo a ser imprevistamente oportuno para que esta discussão seja travada.
Será consensual afirmar que a “dignidade” de um ser será a respeitabilidade moral que ele detém. Neste sentido, quando afirmamos que um ser tem dignidade, estamos a afirmar que ele não pode ser tratado de qualquer maneira, que o modo como ele é tratado não é indiferente. Um ser que tenha dignidade deve, pois, ser tratado de um modo que tenha em consideração e que esteja de acordo com a sua dignidade, nomeadamente considerando o conjunto de características que ele possui que o levam a ter interesses elementares que vêm a traduzir-se, na esfera da moral, em direitos fundamentais, compondo, assim, a sua dignidade moral.
O processo de aferição da dignidade de um ser é um processo de avaliação ética, necessariamente racional. Não é um exercício de opinião livre, meramente subjectivo, cativo das variáveis introduzidas pelas particularidades de cada avaliador. Trata-se, isso sim, de um processo de avaliação que deve ser feito com base na melhor informação disponível acerca de como é esse ser, de modo a determinar se as características deste preenchem os critérios morais para o reconhecimento da dignidade de um ser e se, no caso de tal acontecer, há, então, razões que façam com que esse ser seja digno.
Segue-se daqui uma implicação imediata – que a humanidade já aprendeu mas ainda não compreendeu em toda a sua extensão: a cor de pele, o género ou a identidade sexual desse ser, entre outras características moralmente irrelevantes entre as quais se inclui também a espécie a que esse ser pertence, não contam para esta equação. O que conta é o conjunto de características que ele possui e que o poderão fazer moralmente importante e digno – ou nada importante. Tal deita por terra a validade de qualquer preconceito racista, sexista, homofóbico, especista ou outro como base aceitável para se decidir sobre o estatuto moral de um ser. Do mesmo modo que ser branco, amarelo ou preto (ou verde, por hipótese) não importa de todo em termos morais, e do mesmo modo que ser homem ou mulher, heterossexual, homossexual, bissexual, assexual ou o que for, em nada relevam para determinar a respeitabilidade moral de um indivíduo, também a mera pertença a uma espécie, ou seja, o facto de ser-se humano ou cão ou porco ou galinha, não determina, por si só, se ou que estatuto moral deve um indivíduo ter.
Na verdade, há um conjunto de características cuja relevância moral facilmente se consegue perceber e que facilmente podem aspirar a ser universalmente aceites porque são universalmente válidas, que servem de base para o reconhecimento da importância moral de um ser. A primeira e mais fundamental destas características é a senciência, ou seja, a capacidade física e mental que um ser tem para experienciar subjectivamente aquilo que lhe acontece. Um ser senciente é sensível à dor e ao prazer, pode sentir conforto ou desconforto e está subjectivamente exposto a estímulos que recebe como positivos ou negativos, em função dos quais se sente bem ou mal. Um ser senciente tem experiências não apenas físicas mas também conscientes (mais ou menos complexas) do que lhe acontece. É um sujeito para o qual o que lhe acontece e o modo como é tratado faz diferença. É um sujeito que pode ser bem tratado ou mal tratado e que tem interesse em sentir-se livre de qualquer tipo de sofrimento ou desconforto, ao mesmo tempo que tem interesse em ter experiências positivas, tais como o prazer e o conforto, entre outras. Um ser senciente, independentemente da complexidade da sua mente, é um indivíduo. E, justamente por ser um indivíduo (com uma história), para quem o que lhe acontece faz toda a diferença, que tem interesses fundamentais perfeitamente reconhecíveis (tais como o interesse em não ser torturado, o interesse em não ser aprisionado e o interesse em não ser morto) e a quem a vida pode correr bem ou mal, um ser senciente possui as características elementares que o habilitam a ser considerado um ser moralmente respeitável, ou seja, um ser possuidor de dignidade – em relação ao qual a maneira como nos comportamos deve necessariamente ser moralmente correcta, em função dessa dignidade.
Ora, a senciência é uma característica ostensivamente detida pela maior parte dos animais, certamente pelo menos pelos vertebrados, cefalópodes (ex.: polvos) e decápodes (ex.: lagostas). Se um ser é senciente, ou seja, se é possuidor de todas estas características e destes interesses elementares que as mesmas criam num indivíduo, esse ser vem a ter dignidade moral como consequência de ser como é e de, assim, importar moralmente enquanto indivíduo, pertença ele à espécie a que pertencer, tenha muitos ou poucos pêlos no corpo, caminhe sobre duas ou quatro pernas (ou não caminhe, no caso dos peixes, por exemplo). Chegamos, então, à conclusão de que pelo menos grande parte dos animais (por oposição às plantas, que não são seres sencientes) são seres possuidores de dignidade moral intrínseca, ou seja, a dignidade moral deles existe e justifica-se pelas características que eles próprios possuem – e não extrínsecas, como sugeriu Paulo Rangel, alegando, sem explicar porquê, que os humanos é que têm o dever de respeitar os animais sem que eles tenham o direito a serem respeitados.
Colocam-se, entretanto, duas outras questões que precisamos de resolver. (1) Convencione-se, então, depois desta conclusão, que pelo menos todos os animais que são sencientes (deixando de parte os que não serão, como será o caso dos mosquitos, por exemplo) têm dignidade moral e direitos fundamentais. Como podem eles ter direitos se não têm deveres e se eles próprios não respeitam os direitos uns dos outros quando caçam, por exemplo? (2) Ainda que os animais que não são humanos possam ter dignidade e direitos fundamentais, não será verdade que, mesmo assim, estão numa esfera de importância moral menor do que o patamar de importância moral em que se encontram os humanos?
Respondendo à primeira questão (1), precisamos primeiramente de definir se a detenção e o gozo (ou a titularidade, numa linguagem mais jurídica) de direitos dependem da detenção e do cumprimento de deveres, como se defende numa perspectiva contratualista.
Segundo esta visão, só os seres que têm deveres (que podem compreender o conceito de dever e que podem agir em função dele) podem ter direitos. E, segundo esta visão, esse será o caso de todos os humanos. No entanto, esta visão está factualmente errada porque há muitos humanos que, seja temporária ou permanentemente, não compreendem o conceito de dever, não podem agir em função dele e deles não se espera nem se lhes exige o cumprimento de qualquer dever. A um bebé, a um senil, a um comatoso ou a um humano portador de uma qualquer deficiência mental não é exigido qualquer comportamento moralmente correcto. São humanos que ficam de fora da esfera dos deveres morais, por não lhe estarem vinculados justamente porque não os entendem. No entanto, não ficam nem podem ficar de fora da esfera dos direitos morais, uma vez que continuam a possuir as mesmas características e os mesmos interesses elementares que todos os outros humanos (os que podem compreender e cumprir deveres) possuem, do que se segue que não lhes podem legitimamente ser negados ou retirados quaisquer direitos dos quais se mantêm titulares. Conclui-se, então, que esta visão deve ser rejeitada não só porque assenta no pressuposto falso de que todos os humanos podem, contratualmente, gozar de direitos porque podem cumprir deveres, como é também injusta e discriminatória, uma vez que, se for aceite e implementada, deixa de fora muitos humanos (e todos os animais não-humanos) que, não podendo embora compreender e cumprir deveres, continuam a merecer ser titulares de direitos. Estes são, como lhes chama o filósofo Tom Regan, pacientes morais, em relação aos quais nós, os agentes morais, temos deveres mas dos quais não podemos esperar retorno em termos de cumprimento de deveres.
Ainda respondendo à segunda parte da primeira questão (1), precisamos de determinar se o comportamento amoral (fora da moral) entre animais não-humanos (como acontece na caça, quando uma leoa mata uma gazela, por exemplo) deve ditar que, por consequência, estes fiquem totalmente fora da moral e não possam ser titulares de direitos por nem sequer respeitarem os direitos uns dos outros. A resposta a esta questão é bastante simples e encontra-se na própria questão. É exactamente porque os animais não-humanos vivem num mundo e têm um comportamento amoral (fora da moral), em que a predação faz, além do mais, parte das suas necessidades de sobrevivência (o que não acontece com os humanos, que podem ser integralmente vegetarianos e serem mais saudáveis com uma dieta exclusivamente vegetariana do que serão se consumirem produtos animais), que não estão sujeitos a qualquer dever moral, que não compreendem, do mesmo modo que não compreendem os direitos morais que uns e outros terão. Ao contrário da espécie humana, que, entre outros sistemas de regras pelos quais se rege, regula-se também por códigos morais (que são criações intelectuais e sociais humanas e que, enquanto tal, não existem noutras sociedades animais) e pode reflectir moralmente acerca da correcção e justeza de um acto, de uma decisão, de um qualquer comportamento, as outras espécies animais não o fazem porque não o podem fazer – pelo menos não como os humanos o fazem. E isso não é melhor nem é pior, é apenas diferente, em nada relevando para atribuição de um estatuto moral especial aos animais humanos. E isso remete-nos para a resposta à segunda questão (2).
Respondendo agora à segunda questão (2), somos chamados a reflectir sobre se os humanos terão algo de especial que os distancia das outras espécies animais a ponto de lhes conferir um estatuto moralmente superior, ainda que aos outros animais sejam reconhecidos direitos e/ou dignidade. Somos chamados a reflectir sobre a “separação ontológica” que Paulo Rangel afirma fazer entre os humanos e os outros animais. Que fundamentos poderemos encontrar para esta separação? O que poderá fazer com que ela seja válida?
Se adoptarmos uma visão religiosa (eventualmente católica, entre outras que poderão sugerir o mesmo) segundo a qual os humanos estão no topo da criação e todos os outros animais terão sido criados apenas para servirem os humanos, assim como a Terra teria sido criada apenas para servir de lar aos humanos e para que estes dela pudessem dispor de acordo com as suas conveniências, talvez essa separação possa, desta perspectiva, fazer sentido.
No entanto, se virmos esta questão mais uma vez sob uma perspectiva cientificamente rigorosa, informada e desprovida de qualquer preconceito religioso, ou seja, se virmos esta questão sob uma perspectiva que é sempre válida e universalmente compreensível, independentemente de qualquer crença religiosa (do que se segue que tanto terá condições para ser aceite por católicos, judeus, muçulmanos ou hindus, quanto para ser aceite por ateus), não encontramos nenhum fundamento para essa tal “separação ontológica”, para esse suposto fosso que nos distancia radicalmente dos outros animais, dando-nos uma importância que estes últimos nunca teriam. Se para chegarmos aos melhores, mais justos e mais universalizáveis princípios éticos devemos fundar-nos numa ética racional e cientificamente informada, num código moral que seja guiado pela razão e que seja atento à realidade material e não pela religião ou por qualquer preconceito ideológico, o mesmo devemos fazer para tratar a questão dos direitos dos animais e do estatuto destes. E para tal devemos lembrar-nos que, no passado, os mesmos preconceitos religiosos e/ou ideológicos levaram os humanos a encontrar “separações ontológicas” entre brancos, negros e índios, entre arianos e judeus, entre homens e mulheres. E, viemos a aprendê-lo e a compreendê-lo (embora talvez ainda não de forma suficiente), tal era errado. Essas “separações ontológicas” eram falsas e injustas. E felizmente foram expostas e dispensadas enquanto tal.
Charles Darwin ensinou-nos, há já mais de um século, algo que outros biólogos entretanto continuaram a ensinar-nos e que foram estudando e explicando melhor. Algo que nós, humanos, insistimos em desprezar ou fingir que não é verdade. O evolucionismo mostrou-nos que esse fosso entre humanos e outros animais não existe. Que essa diferença ou distância radical não existe. Cada espécie animal – estando a humana obviamente incluída nestas – evoluiu por selecção natural, mantendo, ao longo dos ciclos de reprodução, a passagem hereditária das características que habilitavam as espécies a sobreviver como as mais comuns, enquanto desapareciam ou rareavam as características que menos tornavam as espécies aptas para sobreviver. Assim, os humanos evoluíram por este processo do modo que lhes permitiu sobreviver enquanto espécie, tendo o mesmo acontecido com todas as outras espécies que não se extinguiram em resultado da selecção natural. Segue-se daqui que os humanos são óptimos a serem humanos mas seriam péssimos se tentassem ser galinhas. As galinhas são excelentes a ser galinhas mas seriam uma lástima se tentassem ser cães ou se fossem medidas segundo parâmetros caninos. E os cães (incluindo o Monty, de Paulo Rangel) são invencíveis a ser cães, mas falhariam rotundamente a um teste que tentasse medir as suas aptidões para serem humanos. E é exactamente esta medição que é errada. Um porco, uma vaca, um gorila, um salmão ou um cão não são melhores nem piores do que os humanos. Não são inferiores nem superiores. Não são mais evoluídos nem são menos evoluídos. São aquilo que vieram a ser dado o processo de evolução por que passaram e que fez com que sobrevivessem enquanto espécie. E o mesmo vale para os humanos. Por muito que infantilmente gostássemos de ser os melhores, os superiores, o cúmulo, não somos. Somos apenas humanos e isso não é mau nem desprestigiante. Não nos deve complexar de modo algum. Deve apenas tornar-nos mais humildes, mais cientes do nosso lugar na Terra e mais compassivos em relação a todos os outros animais.
Impõe-se a principal conclusão desta discussão. Os defensores dos direitos dos animais (que são também, obviamente e é importante destacá-lo, defensores dos direitos humanos) não pretendem reduzir o estatuto, importância ou dignidade dos humanos de modo algum. Pretendem apenas torná-lo mais claro, mais racional e mais justo. Pretendem apenas que os humanos percam esse perigoso complexo de superioridade que não tem qualquer fundamento e que tantos erros graves nos tem levado a cometer – incluindo contra os outros membros da nossa espécie. E, ao mesmo tempo, os defensores dos direitos dos animais pretendem, de igual modo, levar as sociedades humanas a reconhecerem e aceitaram as implicações da mesma teoria dos direitos fundamentais que faz com que a dignidade (animal) humana exista e que, pelos mesmos parâmetros, faz também com que a dignidade (animal) não-humana exista essencialmente nos mesmos termos. Não há, então, uma oposição entre a dignidade dos (animais) humanos e a dignidade dos (animais) não-humanos. Não há uma competição por direitos. Uns não têm que estar pior em benefício dos outros. Entre estes, moralmente iguais, ninguém vale mais do que ninguém, ao contrário do que afirmou Paulo Rangel.
Há, porém, uma parte nesta comunidade de iguais que tem sobre si um peso especial, que carrega solitariamente – o peso da responsabilidade que a razão humana traz consigo. E esse é um peso que devemos carregar de forma justa e positiva, sem a arrogância especista. Porém, se o fizermos com sentido de dever e de justiça, com compaixão e sentido de altruísmo, não será pesado de todo. E dignificar-nos-á. Será um ponto a favor da dignidade humana e será, ao mesmo tempo, um ponto a favor da dignidade animal. A realização do projecto moral humano e da elevação moral das sociedades humanas depende, como grandes pensadores já o afirmaram, não só do modo como os humanos se tratam a si mesmos mas também, e importantemente, do modo como os humanos tratam os outros animais. E é fundamental que Paulo Rangel e quem o acompanha no pensamento errado que este evidenciou compreendam isto.