(Por Leonel Moura. In “Jornal de Negócios”, 24 de Abril de 2009)
No meio da algazarra em que o País se vem consumindo, eis que alguém decidiu fazer história através de um acto invulgar de civilização. O presidente da Câmara de Viana do Castelo, o autarca Defensor Moura (que para os devidos...
No meio da algazarra em que o País se vem consumindo, eis que alguém decidiu fazer história através de um acto invulgar de civilização. O presidente da Câmara de Viana do Castelo, o autarca Defensor Moura (que para os devidos efeitos não é meu familiar), acaba de declarar a cidade livre de touradas.
Podem usar-se todos os argumentos do mundo, falar de tradição, negócio, turismo, bravura e até, os mais cínicos, amor ao animal, mas a tourada é um resquício de tempos bárbaros e em si mesmo um acto de barbárie. Espectáculo tipicamente romano de um tempo em que o povo se entretinha a ver correr o sangue nas arenas, há muito que não representa um estado civilizacional que reconhece direitos de vida e dignidade quer aos humanos quer aos animais que connosco partilham o planeta Terra. Tanto mais que todos os estudos revelam que a dor e o sofrimento não são exclusivos do ser humano.
Não é admissível que alguém possa tirar prazer do suplício de um animal, quer enquanto agente directo dessa agressão, quer na condição de voyeur. Quando um homem precisa de afirmar a sua superioridade face a um animal torturando-o brutalmente, então, é evidente que estamos na presença de um hominídeo ainda muito primitivo. E que uma sociedade persista em manter, já no século XXI, um "espectáculo" tão degradante, eis o que não pode deixar de a desclassificar aos olhos de qualquer avaliação sobre o seu estado de civilização.
É por isso que o gesto de Viana de Castelo fica registado como um marco na luta de tantos portugueses que gostariam que o nosso país, em vez de se perder em estéreis polémicas políticas constantes, pudesse avançar no sentido da civilização e da dignidade humana. Pois que a tourada não é só um acto contra o touro, mas sobretudo uma agressão contra o próprio sentido do que é ser humano hoje.
Avançada e corajosa nos tempos que correm, esta iniciativa do município de Viana não é contudo original. Basta dizer que no tempo do reinado de D. Maria II o assunto foi tratado convenientemente. É revelador ler o decreto de 1836 para se compreender como a sociedade regrediu neste domínio. Diz D. Maria: "considerando que as corridas de touros são um divertimento bárbaro e impróprio de nações civilizadas, e bem assim que semelhantes espectáculos servem unicamente para habituar os homens ao crime e à ferocidade, e desejando eu remover todas as causas que podem impedir ou retardar o aperfeiçoamento moral da Nação Portuguesa: hei por bem decretar que ora em diante fiquem proibidas em todo o Reino as corridas de touros." Mais tarde a força do atavismo revogou o acto mantendo as touradas, mas proibindo a morte do bicho.
Mas, mesmo isso seria ainda objecto de novo retrocesso. É bom nunca esquecer que Jorge Sampaio, que se pretende um homem civilizado, com educação "british" e sempre pronto a dar conselhos para a solução do país e do mundo, enquanto Presidente fez aprovar a vergonhosa lei dos touros de morte de Barrancos. Dia em que para mim, que até fiz parte - lamentavelmente - da comissão de honra da sua eleição, deixou de me merecer qualquer crédito ou simpatia. É que este não é um tema trivial, não é um daqueles assuntos que se tratam na Assembleia da República ao sabor do sempre difícil e muito conjuntural jogo democrático. Trata-se de um questão de civilização, de saber se queremos um país mais evoluído ou retrógrado. Ao contrário de Sampaio que deu um forte sinal no sentido do atraso, Viana do Castelo vem agora afirmar que afinal nem todos se resignam a andar para trás. Por isso quero deixar aqui o meu singelo mas profundo e sincero apreço por este acto tão digno. Tanto mais que a isto, que já não é pouco, se acrescenta um outro dado muito estimulante.
É que tendo sido a Praça de Touros local adquirida pela autarquia existe o projecto de a demolir para dar lugar a um Centro de Ciência Viva. Esse é o Portugal do conhecimento, da criatividade e do progresso humano que queremos e precisamos. Não o do marialvismo e da barbárie. Mas este artigo de opinião não ficaria completo sem uma informação lateral mas muito elucidativa. O PSD de Viana de Castelo votou contra a proposta de abolição das touradas.
No meio da algazarra em que o País se vem consumindo, eis que alguém decidiu fazer história através de um acto invulgar de civilização. O presidente da Câmara de Viana do Castelo, o autarca Defensor Moura (que para os devidos...
No meio da algazarra em que o País se vem consumindo, eis que alguém decidiu fazer história através de um acto invulgar de civilização. O presidente da Câmara de Viana do Castelo, o autarca Defensor Moura (que para os devidos efeitos não é meu familiar), acaba de declarar a cidade livre de touradas.
Podem usar-se todos os argumentos do mundo, falar de tradição, negócio, turismo, bravura e até, os mais cínicos, amor ao animal, mas a tourada é um resquício de tempos bárbaros e em si mesmo um acto de barbárie. Espectáculo tipicamente romano de um tempo em que o povo se entretinha a ver correr o sangue nas arenas, há muito que não representa um estado civilizacional que reconhece direitos de vida e dignidade quer aos humanos quer aos animais que connosco partilham o planeta Terra. Tanto mais que todos os estudos revelam que a dor e o sofrimento não são exclusivos do ser humano.
Não é admissível que alguém possa tirar prazer do suplício de um animal, quer enquanto agente directo dessa agressão, quer na condição de voyeur. Quando um homem precisa de afirmar a sua superioridade face a um animal torturando-o brutalmente, então, é evidente que estamos na presença de um hominídeo ainda muito primitivo. E que uma sociedade persista em manter, já no século XXI, um "espectáculo" tão degradante, eis o que não pode deixar de a desclassificar aos olhos de qualquer avaliação sobre o seu estado de civilização.
É por isso que o gesto de Viana de Castelo fica registado como um marco na luta de tantos portugueses que gostariam que o nosso país, em vez de se perder em estéreis polémicas políticas constantes, pudesse avançar no sentido da civilização e da dignidade humana. Pois que a tourada não é só um acto contra o touro, mas sobretudo uma agressão contra o próprio sentido do que é ser humano hoje.
Avançada e corajosa nos tempos que correm, esta iniciativa do município de Viana não é contudo original. Basta dizer que no tempo do reinado de D. Maria II o assunto foi tratado convenientemente. É revelador ler o decreto de 1836 para se compreender como a sociedade regrediu neste domínio. Diz D. Maria: "considerando que as corridas de touros são um divertimento bárbaro e impróprio de nações civilizadas, e bem assim que semelhantes espectáculos servem unicamente para habituar os homens ao crime e à ferocidade, e desejando eu remover todas as causas que podem impedir ou retardar o aperfeiçoamento moral da Nação Portuguesa: hei por bem decretar que ora em diante fiquem proibidas em todo o Reino as corridas de touros." Mais tarde a força do atavismo revogou o acto mantendo as touradas, mas proibindo a morte do bicho.
Mas, mesmo isso seria ainda objecto de novo retrocesso. É bom nunca esquecer que Jorge Sampaio, que se pretende um homem civilizado, com educação "british" e sempre pronto a dar conselhos para a solução do país e do mundo, enquanto Presidente fez aprovar a vergonhosa lei dos touros de morte de Barrancos. Dia em que para mim, que até fiz parte - lamentavelmente - da comissão de honra da sua eleição, deixou de me merecer qualquer crédito ou simpatia. É que este não é um tema trivial, não é um daqueles assuntos que se tratam na Assembleia da República ao sabor do sempre difícil e muito conjuntural jogo democrático. Trata-se de um questão de civilização, de saber se queremos um país mais evoluído ou retrógrado. Ao contrário de Sampaio que deu um forte sinal no sentido do atraso, Viana do Castelo vem agora afirmar que afinal nem todos se resignam a andar para trás. Por isso quero deixar aqui o meu singelo mas profundo e sincero apreço por este acto tão digno. Tanto mais que a isto, que já não é pouco, se acrescenta um outro dado muito estimulante.
É que tendo sido a Praça de Touros local adquirida pela autarquia existe o projecto de a demolir para dar lugar a um Centro de Ciência Viva. Esse é o Portugal do conhecimento, da criatividade e do progresso humano que queremos e precisamos. Não o do marialvismo e da barbárie. Mas este artigo de opinião não ficaria completo sem uma informação lateral mas muito elucidativa. O PSD de Viana de Castelo votou contra a proposta de abolição das touradas.