segunda-feira, 20 de abril de 2009

Os Fundamentalistas e os Tolerantes

Por Miguel Moutinho, Presidente da ANIMAL, miguel.moutinho@animal.org.pt

Na discussão social e política sobre as touradas em Portugal (como, de resto, em todas as discussões sobre as diversas questões específicas na área dos direitos dos animais ou sobre os direitos dos animais em termos gerais), a maior parte dos intervenientes neste debate – com particular destaque para os próprios defensores das touradas, claro, mas também para os decisores políticos que são chamados a pronunciar-se e a decidir sobre esta questão – escolhe sempre por paralisá-lo, quer utilizando expressões que visam objectivamente travar o debate, declarando-o impossível ou inútil, quer apelando constantemente ao relativismo.

Vem isto a propósito do exemplo mais recente que nos chegou desta situação. Confrontado com pedidos da ANIMAL e de uma multidão de pessoas para declarar Tavira uma “cidade anti-touradas” (Tavira é palco, todos os anos, de pelo menos uma tourada), o Presidente do Município de Tavira, Macário Correia, respondeu a um jornal do Algarve: “Sou sensível às questões de protecção dos animais. Quero fazer trabalho nesse domínio. Mas não somos fundamentalistas, somos tolerantes”, defendendo, assim, a continuação de touradas em Tavira.

É espantosamente comum alguém que se preocupa com os animais e que sai firmemente em defesa destes ser confrontado com este tipo de declaração, sendo acusado de “extremista” ou “fundamentalista” por defender os direitos dos animais de facto, sem que quem faça uma tal declaração se dê sequer ao trabalho de a justificar. Nada disso. Por norma, a utilização deste tipo de expressões visa apenas terminar o debate antes ainda dele começar, embora deixando no ar uma acusação aparentemente legítima e grave dirigida a quem está do lado dos direitos dos animais: a de ser um “fundamentalista” – por oposição a quem lança essa acusação, que é “tolerante”.

Como é incrivelmente comum em Portugal qualquer pessoa poder fazer uma qualquer afirmação sem que essa possa ser analisada, criticada ou refutada (porque em Portugal há a crença infantil de que, quando a nossa opinião é criticada e sujeita a um exame racional, isso pode legitimamente ser interpretado como sendo pessoalmente insultuoso para nós), raramente este tipo de declarações – que, repito, são e visam ser declarações paralisantes para travar discussões – encontra objecções racionalmente apresentadas. E, porque fazê-lo é tão importante e porque a ANIMAL esbarra tantas vezes nessa ausência de crítica e neste tipo de acusações, é de extrema importância demonstrar porque é que isto é absurdo – o que passo a fazer.

Das palavras de Macário Correia – que, saliente-se, são aqui apenas ilustrativas deste tipo de posição, tendo este autarca dito apenas aquilo que tantas outras pessoas dizem –, pode-se concluir que ser “fundamentalista” é querer proibir as touradas, enquanto ser “tolerante” é deixá-las acontecer, mesmo que não se goste delas. Significa isto que quem se opõe à tortura de animais sob a forma de espectáculo, não querendo mais do que a proibição dessa tortura, defendendo-a em nome das vítimas da mesma, que não se podem representar a si mesmas (são touros, não falam a nossa língua, pelo que não se podem defender a si mesmos num debate sobre as touradas), é um ”fundamentalista”. E, por isso – é o que se sugere, sobretudo tendo em consideração o sentido pejorativo que o termo “fundamentalista” tem – está errado. Já quem não se opõe à tortura de animais sob a forma de espectáculo, mesmo que não goste dela (como se presume que será o caso do autarca de Tavira), declinando liminarmente a hipótese de a proibir, é “tolerante”. E, por isso – é o que está implicado –, está certo. Ou seja, quem se opõe à tortura é fundamentalista e está errado; quem admite a prática da tortura, ainda que não participe nela e possa até não a apreciar, está certo. Esta é, pelo menos, a lógica desta visão tão comum em Portugal e tão cara a decisores políticos que querem estar “de bem com Deus e com o Diabo”, tentando agradar a gregos e troianos, mas acabando, afinal, por tomar um partido nesta discussão: por omissão de oposição às touradas e por permissão da realização destas, quem assume esta posição está, na verdade, a colaborar com a tortura contra animais que as touradas envolvem. Já Martin Luther King o disse: ”Aquele que aceita o mal sem se lhe opor está na verdade a cooperar com ele”. Segue-se daqui que os “tolerantes” que acreditam estar do lado do bem porque “toleram” tudo estão, na verdade, a colaborar com o mal porque permitem que ele aconteça sem se lhe oporem.

Em suma, neste debate entre os “fundamentalistas” e os “tolerantes”, os “fundamentalistas” respeitam a integridade, a dignidade e a vida de outros (no caso, de touros ou de outros animais) e não respeitam o acto de torturar estes (no caso, as touradas ou outras violações dos direitos dos animais), pelo que defendem proibição do mesmo; já os “tolerantes” – que não respeitam, toleram (sendo de destacar que “tolerar” significa “suportar” ou “aceitar algo”, sendo uma atitude de considerável altivez e superioridade em que alguém tolera, suporta ou aceita algo, atitude bem diferente do respeito) – aceitam ou suportam a subjugação e a violentação de outros, declinando proibir estes actos e antes afirmando dever conviver tolerantemente com estes.

Bem vistas a coisas, se aceitarmos, então, os termos em que este debate é formulado – fundamentalistas vs. tolerantes –, então é com sentido de ética e justiça, com gosto e com orgulho que na ANIMAL nos assumimos fundamentalistas e não tolerantes. E a esta afirmação voltamos a lembrar Martin Luther King, que escreveu, um dia: “Não foi Abraham Lincoln um extremista? – «Esta nação não pode sobreviver metade escrava, metade livre». Não foi Thomas Jefferson um extremista? – «Reconhecemos estas verdades como auto-evidentes, que todos os homens são criados iguais.» Então, a questão não é se nós somos extremistas ou não; a questão é: que tipo de extremistas somos. Seremos extremistas a favor do ódio ou seremos extremistas a favor do amor?”. Na ANIMAL, somos extremistas a favor do amor, da ética e da justiça.