quarta-feira, 6 de maio de 2009

Já agora, e o porco?

(Por Manuel António Pina. In “Jornal de Notícias”, 29 de Abril de 2009)

Numa sequência acho que de "Pierrot, le fou", Jean-Paul Belmondo queixa-se a Anna Karina de que os seus olhos, os seus ouvidos e todos os seus sentidos estão em autogestão (a expressão é minha, não de Pierrot-Ferdinand), cada um sentindo para seu lado. Ocorre-me sempre essa cena quando vejo os arautos do relativismo multicultural "condenar" por um lado e "compreender" por outro (assim a modos que Diderot: "Ah, madame!, que la morale des aveugles est différente de la notre!") "especificidades culturais" como a mutilação genital feminina nos países islâmicos ou os não-direitos do homem na China. A mim (mas eu sou um primário), quando algo me revolta o estômago revolta-me também a razão. É assim que certas "especificidades religiosas" me fazem sentir (ao meu corpo todo) dentro de uma peça de Ionesco. E, personagem eu próprio, ouvindo na TV um ministro israelita reclamar que não se diga "gripe suína" porque o porco é uma criatura impura para judeus e muçulmanos, dá-me para o multiculturalismo e para tentar ver a coisa também do ponto de vista do porco: "E o porco, que pensará o porco do assunto?".